As qualidades de Martinho Lutero segundo o Grande Conflito
No último dia 31 outubro, o mundo cristão relembrou os 503 anos da Reforma Protestante, um dos maiores movimentos religiosos da história. Seu principal protagonista, o monge agostiniano Martinho Lutero, liderou um movimento que devolveu as Escrituras ao povo e quebrou a hegemonia hermenêutica da igreja Católica Apostólica Romana, tornando possível o lema Sóla Scriptura (somente a Escritura), uma realidade.
Como ainda estamos respirando o aniversário da Reforma Protestante, pensei oferecer, aqui no blog, comentários a respeito de Lutero, com base num livro escrito por Ellen White. Uma experiência desagradável, a vários anos, me motivou a escrever sobre esse ícone cristão.
Quando eu estudava o Ensino Médio, morava numa cidade considerada uma das mais católicas do mundo. Nossa professora de História, certa feita, estava fazendo uma apresentação sobre a Reforma Protestante e seus desdobramentos para a história da humanidade. Ela minimizou a contribuição sócia espiritual desse movimento religioso, além de insinuar que seu líder principal, Martinho Lutero, era um paranoico ou doente mental. [1]
Embora a opinião da professora fosse claramente preconceituosa e destituída de fundamento, suscita uma pergunta: quais eram as qualidades pessoais de Lutero como líder religioso do século 16 e que lições os líderes e pastores do século XXI podem aprender com ele? Eu já era adventista nesse tempo e já tinha lido o livro O Grande Conflito, que descreve parcialmente tanto a Reforma como a biografia do reformador. Por essa razão, esse artigo descreve as principais qualidades de Martinho Lutero segundo essa obra, além de oferecer uma reflexão sobre como os pastores atuais podem interiorizá-las em seus ministérios.
O livro o Grande Conflito, escrito por Ellen G. White, é um clássico adventista e considerado sua principal obra literária. Depois de várias revisões, sua edição definitiva de 1911 é à base do presente estudo.
Qualidades de Martinho Lutero
O desenvolvimento das nobres qualidades espirituais, psicológicas e intelectuais de Martinho Lutero foi resultado de uma confluência de fatores, destacando-se a marcante influência de seus pais [2] e amigos [3], a visão religiosa de seu tempo e sua busca pessoal pela excelência [4]. Por outro lado, “dificuldades, privações e severa disciplina foram à escola na qual a Sabedoria infinita preparou Lutero para a importante missão de sua vida.”[5] Entre seus atributos mais sobressalientes podem sem mencionados:
Consagração – Segundo Ellen White Lutero era “zeloso, ardente e dedicado, não conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento para a fé religiosa além das Escrituras Sagradas.” [6] A autora acrescenta que “o temor do Senhor habitava no coração de Lutero, habilitando-o a manter sua firmeza de propósito e levando-o a profunda humildade perante Deus. Ele tinha uma constante intuição de sua dependência do auxilio divino, e não deixava de iniciar cada dia com oração, enquanto o íntimo estava continuamente a respirar uma súplica de guia e apoio.” [7]
Desde seus mais tenros anos, Lutero demonstrou vocação pela vida religiosa, mas foi a partir de sua conversão e posterior compreensão da doutrina da justificação pela fé que sua espiritualidade se desenvolveu mais profundamente.[8]
Lutero devotou sua vida a Deus, sendo um homem de oração. “Orar bem”, dizia ele muitas vezes, “é a melhor metade do estudo”.[9] Além da oração, “acima de tudo se deleitava no estudo da Palavra de Deus.”[10]
Coragem – Uma frase do livro o Grande Conflito ilustram a coragem indomável do reformar alemão. Lutero “era destemido. Roma tinha arremessado seus anátemas contra ele, e o mundo olhava nada duvidando de que perecesse ou fosse obrigado a render-se. Mas com poder terrível ele rebateu contra ela a sentença de condenação, e publicamente declarou sua decisão de abandoná-la para sempre. Na presença de uma multidão de estudantes, doutores e cidadãos de todas as classes, Lutero queimou a bula papal, com as leis canônicas, decretos e certos escritos que sustentavam o poder papal. ‘Meus inimigos, queimando meus livros, foram capazes’, disse ele, ‘de prejudicar a causa da verdade no espírito do povo comum, e destruir lhes a alma; por esse motivo consumo seus livros, em retribuição. Uma luta séria acaba de começar. Até aqui tenho estado apenas a brincar com o papa. Iniciei essa obra no nome de Deus; ela se concluirá sem mim, e pelo Seu poder. ’”[11]
O próprio Imperador da Alemanha, Carlos V, ouvindo o segundo discurso de Lutero perante a Dieta de Worms, notando sua “coragem e firmeza” reconheceu: “Este monge fala com coração intrépido e inabalável coragem.”[12] Outras autoridades de então, como o eleitor da Saxônia, Frederico, também reconheceram sua coragem, firmeza e domínio próprio.”[13]
Realmente “corajosamente Lutero defendeu o evangelho dos ataques que vinham de todos os lados. A Palavra de Deus se demonstrou uma arma poderosa em todo o conflito. Com essa palavra guerreou contra a usurpada autoridade do papa e a filosofia racionalista dos escolásticos, enquanto se mantinha firme como uma rocha contra o fanatismo que procurava aliar-se à Reforma.” [14]
Realmente foi um ato de extrema coragem Lutero desafiar a autoridade papal, o homem mais poderoso do mundo em seus dias, temido até pelos imperadores; desafiado a teologia católica vigente quando publicou as 95 teses sobre justificação pela fé; traduzir a Bíblia para a língua alemã, comparecido perante as dieta de Worms, rompido definitivamente com a Igreja Católica, não transigir com as autoridades civis ou eclesiásticas, enfrentado a fúria dos fanáticos que se levantaram após algum tempo. Se for verdade que o mundo é dos intrépidos, a Reforma também o foi.
Humildade – A infância pobre de Lutero, cheio de privações, além de sua juventude dedicada à vida monástica podem ter influenciado a personalidade e conduta humilde de Lutero. Entretanto, mesmo depois que “recebeu na Universidade de Wittenberg o grau de doutor em teologia” [15] onde se distinguiu como professor e tornar-se posteriormente uma figura proeminente, devido ao seu protesto e escritos, ele manteve sua postura despretensiosa. Mesmo as acusações a que foi submetido, e a perseguição de seus inimigos, além dos riscos de ser queimado na fogueira, como outros reformadores, não tiraram dele sua dignidade.
Na entrevista em Augsburgo, no primeiro processo, demonstrou a diferença entre Lutero e o cardeal católico que o entrevistou. “A grande assembleia presente tivera oportunidade de comparar os dois homens, e julgar por si mesmo o espírito manifestado por eles... o reformador, simples, humilde, firme, permanecia na força de Deus, tendo ao seu lado a verdade; o representante do papa, importante a seus próprios olhos, despótico, altivo e desarrozoado, achava-se sem um único argumento nas Escrituras...”[16] Esse texto demonstra esse grande contraste entre o caráter de Lutero e de outros líderes religiosos de seu tempo. Ele também era consciente que Deus “comumente escolhia homens humildes e desprezados” para Sua causa. [17]
Determinação – Lutero foi sem dúvida um dos homens mais perseverantes de seu tempo e um dos mais determinados da história. Ele não desistiu de sua causa, apesar dos perigos envolvidos. Sua trajetória até o mundo acadêmico e ao sacerdócio católico evidenciam que ele não desistia facilmente de suas metas, especialmente as espirituais.
Quando Lutero teve que enfrentar seu maior desafio, a Dieta de Worms foi advertido por vozes amigas dos propósitos dos romanistas. Lutero respondeu: “Ainda que acendesse por todo o caminho de Worms a Wittenberg uma fogueira cujas chamas atingissem o céu, em nome do Senhor eu caminharia pelo meio dela; compareceria perante eles; entraria pelas mandíbulas desse hipopótamo e lhe quebraria os dentes, confessando o Senhor Jesus Cristo.”[18]
Em meio aos apelos ou ameaças para renunciar aos seus pontos de vista e reconciliar-se com Roma, ele manteve sua posição adotada com base na Palavra de Deus, estando disposto a entregar antes seu corpo, sangue e vida.[19] Ellen White afirma que foi “sua persistente firmeza foi o meio para a emancipação da Igreja e o início de uma era nova e melhor” [20].
Sabedoria – A carta de Tiago, considerada por Lutero a epístola de palha, devido a um aparente apoio a salvação pelas obras [21], diz: “Se, porém, algum de vós necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e nada lhes impropera; e ser-lhe-á concedida.” (Tiago 1:5). Embora Lutero tivesse uma visão negativa sobre esse livro bíblico, recebeu a sabedoria de Deus prometida nele.
A palavra de Deus também diz que o “temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Jó 28:28). O Grande Conflito esclarece que “o temor do Senhor habitava no coração de Lutero.” [22] Sua autora comenta que, desde a juventude, o reformador “aplicou-se ao estudo dos melhores autores, entesourando diligentemente seus mais ponderados conceitos e fazendo sua a sabedoria dos sábios. Mesmo sob a ríspida disciplina dos mestres anteriores, cedo apresentara ele promessa de distinção; e sob influências favoráveis, seu espírito logo se desenvolveu. Memória retentiva, vívida imaginação, poderosa faculdade de raciocinar e aplicação incansável, colocaram-no logo em primeiro lugar entre seus companheiros. A disciplina intelectual amadureceu lhe o entendimento, despertando uma atividade de espírito e agudeza de percepção que o estavam preparando para os embates da avida.” [23]
A sabedoria de Lutero se manifestou em seu ministério como professor, pregador, apologista, escritor e conselheiro. Um fato, mais que outros, demonstrou que Lutero tinha um raciocínio incrível. Quando ele escreveu as 95 teses contra as indulgências e as afixou na porta da igreja do Castelo de Wittemberg, “declarou sua disposição de defender essas teses no dia seguinte na Universidade, contra todos os que achassem conveniente atacá-las”, mas ninguém ousou aceitar o desafio. [24]
A sabedoria desse homem de Deus não era resultado apenas de seus esforços. Ele acreditava que “não podemos atingir a compreensão das Escrituras, quer pelo estudo quer pelo intelecto... não há intérprete da Palavra de Deus senão o Autor dessa Palavra, como Ele mesmo diz: ‘E serão todos ensinados por Deus.’ Nada esperes de teus próprios trabalhos, de tua própria compreensão; confia somente em Deus, e na influência de Seu Espírito. Crê isto pela palavra de um homem que tem tido experiência.” [25]
Considerações finais
As nobres qualidades espirituais e pessoais de Martinho Lutero, descritas nesse artigo, são necessários em nossos dias, no ministério evangélico. Cada pastor, ladeado pela graça de Deus, pode desenvolvê-las.
“A influência deste único homem que ousou pensar e agir por si mesmo em assuntos religiosos, deveria afetar a igreja e o mundo, não somente em seu próprio tempo mas em todas as gerações futuras. Sua firmeza e fidelidade fortaleceriam, até ao final do tempo, a todos os que passassem por experiência semelhante.” [26]
Ellen White afirma que “a reforma não terminou com Lutero, como muitos supõem. Continuará até ao fim da história deste mundo.” Devemos fazer a nossa parte na grande obra de exaltar a Cristo como o Salvador que perdoa os pecados, a Palavra de Deus como o livro norteador da vida cristã. O desenvolvimento dessas qualidades encontradas no reformador será essencial nessa jornada.
Ribamar Diniz é pastor, escritor e editor. Atualmente é mestrando em Teologia pelo SALT-FADBA, membro da Sociedade Criacionista Brasileira e pastor distrital na Missão Pará Amapá.
Referências:
__________________________ [1] Na época eu estudava na cidade de Juazeiro do Norte, considerado o segundo local de maior peregrinação do Brasil e quarto do mundo, visitada por mais de dois milhões de católicos por ano, que visitam a estátua do Padre Cícero, um dos maiores monumentos religiosos do mundo. Ver o livro O Adventispmo na terra do Padre Cícero: Uma história de fé, perseguição e milagres (Brasília: Sociedade Criacionista Brasileira, 2011), 24-27. [2] O Grande Conflito (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2005), 120-121. [3] Idem, 123, 134. [4] Idem, 121, 122. [5] Idem, 120. [6] Idem, 120-121. [7] Idem. [8] Idem,124,125 [9] Idem 122. [10] Idem, 123.e [11] Idem, 142. [12] Idem, 161. [13] Idem, 162. [14] Idem, 193. [15] Idem, 125-126. [16] Idem, 137. [17] Idem, 142. [18] Ver D’Aubigné. White, O Grande Conflito, 152-153. [19] Idem, D’Aubigné. 166. [20] Idem, 166. [21] Bíblia Andrews (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2015), Ver Introdução ao livro de Tiago. [22] Idem, 122. [23] Idem, 122. [24] Idem, 130. [25] D’Aubigné. 132. [26] Idem, 166.
Comments