Uma experiência em um país multiétnico

A grande comissão da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) no tempo do fim é proclamar o evangelho eterno “a toda nação, e tribo, e língua, e povo” (Ap. 12:6). Essa obra global começou timidamente, após o grande desapontamento de 1844, quando surgiu o movimento adventista sabatista, que recebeu a ordem de profetizar “outra vez a muitos povos, e nações, e línguas, e reis” (Ap 10:11). Atualmente os adventistas pregam em 516 idiomas e tem presença em 2012 países, dos 237 reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, publicam livros e revistas em 331 línguas e dialetos.[1] A alguns anos, participei modestamente de um projeto inesquecível, num país multiétnico.
Em 2008 fiz uma das viagens mais emocionantes da vida. Saí de Juazeiro do Norte, no Ceará, rumo a Cochabamba, na Bolívia. Foi minha primeira viagem ao exterior. No trajeto, tive contato com falantes da língua espanhola e de outros idiomas nativos daquele país[2]. A Nova Constituição Política do Estado Boliviano[3], promulgada em 2009, reconhece 36 idiomas oficiais, sendo o espanhol, quéchua, o aymara e o guarani os mais falados pelos 11 milhões de habitantes do país mais indígena da América Latina[4].
A princípio tive dificuldades em entender e falar em espanhol. Além do mais, não entendia nada dos demais idiomas bolivianos. Um fato engraçado ilustra isso. No primeiro dia em Cochabamba, tive dificuldades para comprar alimentos, e acabei comendo o que não queria, pois não consegui me comunicar corretamente. Felizmente, o convívio e a imersão naquela cultura aumentou meu conhecimento e não tive maiores dificuldades enquanto morei ali.
Entre as línguas nativas da América do Sul, o quéchua é o mais falado, com cerca de 12 milhões de falantes no Peru, Equador, Colômbia, Bolívia, Argentina e Chile, além de falantes que vivem em outros países, como o Brasil[5]. Na Bolívia, cerca 2.281,000 milhões de pessoas falam quéchua (quase 28% da população), especialmente no Ocidente, predominantemente em Cochabamba, onde está localizada a Universidade Adventista da Bolívia (UAB), principal instituição adventista no coração da América do Sul. Nessa renomada instituição ingressei para cursar Teologia e me preparar para ser um missionário.
Quando comecei a visitar as igrejas para realizar práticas pastorais, constatei que parte da população, incluindo muitos membros da igreja se comunicavam em quéchua ou tinham predileção por esse idioma. Os mais idosos, geralmente, só falavam em quéchua, usando o espanhol apenas para negociar com brasileiros. Descobri também que a Igreja Adventista desenvolvia alguns projetos para essa etnia. Na IASD Central de Cochabamba, por exemplo, onde fiz práticas pastorais em 2013, existe um turno quéchua, onde o culto é realizado nessa língua. Participam especialmente irmãos idosos. Além disso, há hinos e alguns materiais escritos nesse idioma para serem usados no evangelismo. Umas das melhores iniciativas recentes é o estudo bíblico “La Fe de Jesus” (A Fé de Jesus) em quéchua, disponível em vídeo.[6] Apesar do trabalho assistencial e evangelístico da IASD entre os povos indígenas sul americanos ser antigo e frutífero[7], ele não tem tido a atenção suficiente.
Recentemente, o site da Revista Adventista publicou o relato de um pastor brasileiro que tenta alcançar comunidades de difícil acesso na Bolívia. Para Sérgio Vassalo, “o maior desafio era entender o idioma quéchua. Como poderia me comunicar bem com os irmãos da igreja?”[8] A limitação de Vassalo, que precisou conseguir um intérprete para atender os membros de suas igrejas da zona rural, é o de muitos missionários que não falam o idioma e não contam com materiais para evangelizar esse povo. Quando cheguei na Bolívia, o desafio era ainda maior. Percebi que não havia quase nada em quéchua e decidi preparar pelo menos um folheto nesse idioma.
Segundo Ellen White, cofundadora da Igreja Adventista, “pastores e povo devem empenhar-se na circulação de livros e folhetos, como nunca antes. Vendam onde o povo tenha condições e esteja disposto a comprar. Onde não for possível, que sejam doados.”[9]
Com base nisso, escrevi o folheto uma vida de esperança, com cinco colunas de esperança. Pedi a uma professora de língua quéchua para fazer a tradução e ao pastor Davi Vargas para revisá-lo. Em seguida busquei a União Boliviana, que financiou a impressão de 5 mil exemplares, na Gráfica mantida pela UAB. A cor e design do folheto lembram um aguayo, traje típico boliviano. O material foi distribuído entre membros da igreja e pessoas da comunidade. Além da mensagem, a brochura incluía um canhoto para solicitar oração ou estudos bíblicos. Espero que esse pequeno gesto, possa inspirar outros, no alcance de pessoas que falam distintos idiomas e precisam ser alcançados pelo evangelho. Isso é absolutamente necessário e urgente, já que em 2022 começa a década das Línguas Indígenas, instituída pela ONU, sob a motivação dos povos indígenas da Bolívia.[10]
Ribamar Diniz é pastor, escritor e editor. Mestre em Teologia pelo SALT/FADBA, estudou na Universidade Adventista da Bolívia entre 2008 e 2013 e atualmente serve como pastor distrital na Missão Para Amapá.
Referencias:
[1] Adventistas no mundo. Portal da Igreja Adventista do Sétimo Dia. https://www.adventistas.org/pt/institucional/os-adventistas/adventistas-no-mundo/. Acesso: 18/08/2022. [2] Dylan Lyons, As 10 línguas mais faladas na América do Sul. https://pt.babbel.com/pt/magazine/as-10-linguas-mais-faladas-na-america-do-sul/. Acesso em 18/08/2022. Ver Quechua, a língua dos Incas. https://www.ingressomachupicchu.com/quechua-lingua-dos-incas/ [3] https://sea.gob.bo/digesto/CompendioNormativo/01.pdf. Acesso: 18/08/2022. [4] Estado de Minas, Bolívia, o país mais indígena da América Latina. https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/10/15/interna_internacional,1194995/bolivia-o-pais-mais-indigena-da-america-latina.shtml. Acesso: 18/08/2022. [5] Inge Sichra, Cultura escrita quechua en Bolivia: contradicción en los tiempos del poder. file:///C:/Users/Pr.%20Ribamar/Downloads/160-Texto%20do%20artigo-744-763-10-20141125.pdf. Acesso: 18/08/2022. [6]https://videos.adventistas.org/es/editoria/biblia/la-fe-de-jesus-en-quechua/. Acesso: 18/08/2022. [7]Ubirajara de Farias Prestes Filho, La historia de los pueblos indígenas y la misión adventista. https://noticias.adventistas.org/es/noticia/fechas-especiales/la-historia-de-los-pueblos-indigenas-y-la-mision-adventista/. acesso: 18/08/2022. [8]Sérgio Vassalo, A travessia. https://www.revistaadventista.com.br/da-redacao/destaques/a-travessia/. Acesso: 18/08/2022. [9] Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja [CPB, 2021], v. 1, p. 599. [10] Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Linguística. A década internacional das línguas indígenas no Brasil. http://ipol.org.br/a-decada-internacional-das-linguas-indigenas-no-brasil/. Acesso: 18/08/2022.
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