Entre as várias imagens e símbolos do livro bíblico do Apocalipse, está o dragão do capítulo 12. Ali é dito, em conexão com a visão da mulher vestida de sol: “Viu-se, também, outro sinal no céu, e eis um dragão, grande, vermelho, com sete cabeças, dez chifres e, nas cabeças, sete diademas. A sua cauda arrastava a terça parte das estrelas do céu, as quais lançou para à terra; e o dragão se deteve em frente da mulher que estava para dar à luz, a fim de lhe devorar o filho quando nascesse...” na continuidade do relato, João declara: “Houve peleja no céu. Miguel e os seus anjos pelejaram contra o dragão. Também pelejaram o dragão e seus anjos; todavia não prevaleceram; nem mais se achou no céu o lugar deles. E foi expulso o grande dragão, a antiga serpente, que se chama diabo e Satanás, o sedutor de todo o mundo, sim, foi atirada para à terra, e, com ele, os seus anjos.” (Ap 12:1-9). O capítulo encerra mencionando outra vez o dragão: “Quando, pois, o dragão se viu atirada para à terra, perseguiu a mulher que dera à luz o filho varão”, que fugiu ao deserto durante um longo período de tempo (1260 anos). “Então, a serpente arrojou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, a fim de fazer com que ela fosse arrebatada pelo rio”. Finalmente, o texto diz que “irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e tem o testemunho de Jesus; e se pôs em pé sobre a areia do mar” (Ap 12:13-17).
Esse artigo tem o propósito de responder as seguintes perguntas: quem é o dragão representado? Porque João usou esse símbolo em seu livro? Que implicações essa descoberta tem para o povo de Deus nos últimos dias? Várias interpretações já foram propostas ao longo da história. Elaborações históricas, mitológicas, e teológicas já foram feitas para interpretar a natureza e atuação do dragão no livro profético da Bíblia Sagrada.
Em um artigo intitulado A pandemia, o dragão e o apocalipse, Diego Klautau, doutor em Ciências da Religião, se vale da mitologia comparada, no livro clássico de Mircea Eliade, Tratado da história das Religiões, para identificar e pensar a figura do dragão.
“A palavra vem do grego drakon, ser aquático e que remete ao ato de ver, monstro normalmente de caráter maligno. Contudo, historicamente, podemos considerar, grosso modo, e correndo todos os riscos da generalização e simplificação, que apesar das diferenças particulares da imagem nas diferentes culturas, o dragão (nesse sentido amplo de ser marinho, caótico e superior ao homem, como um grande réptil, serpente, crocodilo ou lagarto) simboliza as forças da natureza na sua forma mais exuberante, dinâmica, vigorosa e indiferente ao homem.” (KLAUTAU, 2020).
O autor analisa três abordagens sobre a figura do dragão, sendo uma do oriente, outra do ocidente e, por fim, uma cristã. Na primeira, lembra de Tiamat, a deusa-serpente do poema babilônio Enuma Elish, datado do segundo milênio a.C., morta pelo deus Marduk, que utiliza a carcaça de Tiamat para configurar o mundo. Nesse mito fundante, o dragão é tanto o desafio a ser vencido em nome da sobrevivência quanto a origem da matéria-prima para a construção do mundo civilizado. Assim, a natureza é tanto o maior oponente quanto a fonte da vida. Entre os gregos, essa dupla significação, isto é, do inimigo a ser abatido e do caminho para o tesouro, é abundante, podendo ser encontrada em várias mitologias (Zeus, Hércules, etc.). O símbolo do dragão, portanto, é sempre o obstáculo a ser vencido para se conseguir o tesouro. Pôr à prova o heroísmo é matar o monstro reptiliano em nome da civilização, seja para conseguir os recursos materiais para a formação do mundo, seja para honrar o próprio nome na glória, ou ainda para conseguir a preciosidade almejada.
A segunda abordagem é à maneira oriental, como as tradições da China, das Coreias e do Japão. Essas civilizações se relacionam com a natureza por meio de uma postura mais de harmonização, daí o dragão para eles ser menos hostil, um símbolo da superioridade de forças que devem ser reverenciadas e respeitadas. A indiferença do dragão diante do homem e a necessidade de humildade pela noção da pequenez humana é comum com os ocidentais, mas a atitude de conquista difere da atitude de harmonia dos orientais. Nesse sentido, em vez dos traços de desafio e conquista, temos harmonia e reverência. O dragão-natureza é a autoridade ordenadora da humanidade. No ocidente, na tradição anglo-saxônica representada pelos EUA e a Inglaterra, existe o poema Beowulf possivelmente do século VIII d.C., que mistura elementos greco-romanos, bíblicos e nórdicos, expressando o herói impetuoso e forte diante dos ogros e que mata o dragão que cuida do tesouro, para livrar seu povo do perigo.
Na abordagem cristã, Klautau complementa, o relato bíblico do Gênesis apresenta a serpente que engana Adão e Eva como uma mentirosa. Não oferece perigo físico e nem mesmo uma reverência. Ela é frágil e se arrasta no chão, sussurrando coisas suspeitas. Da mesma forma, no livro de Daniel [na seção apócrifa], o profeta aparece matando um monstro adorado pelos babilônios e descrito como dragão (Dn 14, 23-30), revelando que ninguém é como Deus, pois até mesmos animais terríveis como os dragões podem ser mortos. Por fim, o profeta Ezequiel compara o faraó no Egito com o dragão (Ez 29, 03) e, sua aparente invencibilidade destinada ao fracasso.
No contexto adventista, Vanderlei Dornelles tece um comentário sobre o assunto. Em seu livro Pelo sangue do Cordeiro (2015), o autor usa o Antigo Testamento como pano de fundo para interpretar a figura draconiana do Novo Testamento. O profeta João emprega 13 vezes o substantivo grego drakon, “dragão”, e quatro vezes ophis, “serpente”, de forma intercambiáveis, em conexão com os inimigos de Deus. O uso dessas imagens no AT pode sugerir o que estava na mente de João ao usar o termo drakon para descrever a fera de sete cabeças e dez chifres. Em Apocalipse 12, o termo serpente e usado como sinônimo de dragão.
A figura do dragão, como representação das forças opositores a Deus e seu povo, é comum no AT, assim como a da serpente. Curiosamente, a metáfora do dragão é usada em referência ao Egito e a Babilônia. (Sl 74:134, 14, ARC). Nos dois versos, se usa a palavra hebraico ro’sh, “cabeças”, no plural, no que é seguido pela versão grega. “Nesse caso, no paralelismo, o salmista está dizendo que Deus, no Êxodo, quebrou as cabeças do dragão. O Egito, portanto, é referido com a figura do dragão de mais de uma cabeça.” (DORNELES, 2015, p. 74). Além do Egito, Babilônia também é chamada de tannyin (drakon, na LXX), o qual esmagou Judá, mas que seria destruída pelo Senhor (Jr. 51:34, 36, 37).
Para Dorneles as setes cabeças do dragão representam, respectivamente, Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma Imperial e Roma papal, agentes que (inspirados por Satanás), perseguem o povo de Deus ao longo da história e que são derrotados pelo Senhor. (cf. DORNELES, 2015, p. 83).
Isaias visualiza o fim do cativeiro em termos do “dia do Senhor” (Is 2:12; 7:18; 10:20, etc.), retomado no Novo Testamento como o dia da segunda vida de Cristo. Isaias afirma: “Naquele dia, o Senhor castigará com a sua dura espada, grande e forte, o dragão, serpente veloz, e o dragão, serpente sinuosa, e matará o monstro que está no mar” (Is 27:1). O profeta emprega aqui o termo livyathan (drakon, na LXX), e tannyin (drakon, na LXX) e os interpreta como sendo a “serpente”, que é nachash (ophis, na LXX), os dois termos gregos empregados por João. A figura do monstro de sete cabeças empregada pelo salmista, pelos profetas e, então, pelo Apocalipse parte da mitologia antiga. Na mitologia cananeia, leviatã era uma serpente de sete cabeças que lutava contra os deuses e as forças do bem, portanto, era considerado uma incorporação das forças do mal. O mito babilônico da criação apresenta um monstro de sete cabeças, o qual é destruído pelo deus Marduk e a imagem de um monstro de sete cabeças aparece em antigos textos sumerianos, babilônicos e egípcios (cf. DORNELES, 2015, p. 79).
Essa profecia de Isaias 27, colocada em paralelo com as de Ezequiel 34, Miqueias 7 e Isaias 11, leva a conclusão de que, para esses profetas, no dia do Senhor, Deus se levanta contra as nações opressores (Egito, Assíria e Babilônia) para livrar Israel. Essas nações, portanto, são retratadas com o emprego das figuras “besta”, “dragão” e “serpente”. (DORNELES, 2015, p. 75-76). [...] A profecia de Isaias 27 parece estar na mente de João ao descrever a visão do Cavaleiro que se chama ‘Fiel e Verdadeiro’, de cuja boca sai uma espada afiada para ‘com ela ferir as nações’ (Ap 19:11, 15) e para a prisão do “dragão [drakon], a antiga serpente [ophis] que é o diabo, Satanás (Ap 20:20), o que por fim é destruído no lago de fogo (20:10). Assim, o dia do Senhor, no Apocalipse, corresponde ao dia em que a salvação é consumada, quando o ‘dragão, ou a ‘serpente, que foi expulsa do Céu (12:799) e perseguiu a mulher (12:17), for derrotado por Cristo no ‘lago de fogo’ (20:2, 10)”. (DORNELES, 2015, p. 76).
Segundo Dorneles, antes desse dia final, “cada vez que Deus se levantou para defender o povo da aliança, fosse contra o Egito, Assíria ou Babilônia, sua ação salvífica correspondeu a ‘quebrar’ as cabeças do dragão (Sl 74:13, 14, ARC). Assim, o próprio diabo e figurativamente derrotado, quando Deus destrói um poder terreno que o inimigo vinha usando para perseguir os santos. No final, porém, ele mesmo será destruído.” (DORNELES, 2015, p. 76). “Assim, há evidências suficientes para se afirmar que a figura descrita por João, em Apocalipse 12, 13 e 17, como um dragão ou uma besta de sete cabeças, é uma reprodução da figura de therion, tannyin e livyathan bem como de ophis (a serpente) do Antigo Testamento. Esse raciocínio está em harmonia com a ideia de que o Apocalipse está enraizado na linguagem e no sistema de imagens do Antigo Testamento, com o qual apresenta inúmeras relações intertextuais.” (DORNELES, 2015, p 76).
William Shea concorda com Dornelles, simplificando a interpretação da passagem. “A narrativa se inicia com uma seção de cinco versos retratando um conflito entre uma mulher glorificada (v. 1-12) – comumente interpretada como a igreja (ou Israel como uma fase anterior da igreja) – e o dragão (v. 3-4) – comumente interpretado como o Diabo e/ou seus agentes terrestres.”. O esboço (SHEA, 2017, p. 389, 390) do capítulo 12 proposto é:
A. v. 1-5 – Primeiro conflito do Dragão contra a Mulher
B¹. v. 6 – Conflito intermediário do Dragão contra a Mulher
X. v. 7-12 – Conflito do Dragão contra Miguel no Céu
B².v. 13-16 – Conflito intermediário do Dragão contra a Mulher
C. v.17 – Conflito final do Dragão contra a Mulher
A primeira fase do conflito com o diabo se refere aos primórdios da igreja. O conflito final a fase final da igreja na Terra e entre os polos encontramos a igreja no deserto, a igreja perseguida, na Idade Média. No centro desse panorama, se projeta a luta entre Cristo (Miguel) e Satanás (o Dragão), a controvérsia que está por trás de tudo, ou seja, o antagonismo do diabo e suas forças malignas dispostas contra a igreja. (SHEA, 2017, pp. 390, 391).
Conhecer a identidade do dragão de Apocalipse 12, bem como suas ações, permite ao povo de Deus (especialmente no tempo do fim), aumentar sua confiança no Senhor, que sempre vence o diabo e seus agentes. Além disso, os elementos simbólicos presentes na visão desmascaram seu caráter (crueldade, engano, orgulho, etc.) em contraste com o caráter benevolente do Criador (Ap 1:5; 1Jo 4:8). A revelação ainda anima os crentes, a confiar “no sangue do Cordeiro”, manter “a palavra do testemunho” e a perseverar na obediência aos “mandamentos de Deus e fé de Jesus” (Ap. 12:11; 14:12) como chaves para a vitória contra o Dragão.
Ribamar Diniz é pastor, escritor, e editor. Mestre em Teologia (SALT/FADBA) e pastor na Missão Para Amapá.
Referências:
KLAUTAU, Diego. A pandemia, o dragão e o apocalipse. Disponível em: https://tolkienista.com/2020/11/20/a-pandemia-o-dragao-e-o-apocalipse/. Acesso: 18 set. 2022.
DORNELES, Vanderlei. Pelo sangue do Cordeiro: a vitória do Remanescente na batalha final. Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2015.
SHEA, William H. Profecias de tempo de Daniel 12 e Apocalipse 12-13. In HOLBROOK, Frank B. (ed.) Estudos sobre Apocalipse: temas introdutórios. Serie Santuário e profecias apocalípticas, vo. 6, tradução: Francisco Alves de Pontes. 1 ed. Engenheiro Coelho, São Paulo: Unaspress – Imprensa Universitária Adventista, 2017, pp. 367-402.
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