A Páscoa é uma boa ocasião para recordar a morte do Filho de Deus

Às vésperas da sexta-feira santa, feriado internacional, André Mendonça, Advogado-Geral da União, solicitou ao Supremo Tribunal Federal a suspenção “de quaisquer atos normativos, estaduais/distritais ou federais, que proíbam de modo total a realização de atividades religiosas, inclusive sem aglomerações, especialmente durante a celebração da Páscoa por parte dos cristãos [...] A urgência da medida decorre da iminência da Sexta-feira da Paixão e do Domingo de Páscoa, evento celebrado por milhões de brasileiros que professam a fé cristã” [1].
Esse fato destaca o valor que os cristãos (católicos, protestantes e evangélicos), atribuem a comemoração da Páscoa, principal celebração cristã. A Páscoa tem sido ressignificada por muitos. Para o comércio o período é apenas uma oportunidade de incrementar as vendas, com destaque para os ovos de chocolate e souvenirs do coelhinho de páscoa. Para os cristãos, porém, o evento relaciona-se diretamente com a morte e ressurreição de Jesus. Esse artigo analisa o significado das últimas palavras de Cristo, pronunciados em conexão com Sua crucificação.
Embora o relato sobre a crucificação seja mencionado pelos quatro evangelhos, foi o apóstolo João quem registrou as últimas palavras de Cristo, na cruz: Antes de render o espírito, o Salvador disse: “Está consumado” (Jo 19:30). Antes de analisar essa frase, veremos como os romanos, judeus e discípulos de Jesus entenderam Sua crucifixão.
A crucificação para os romanos[2]
A prática de crucificar pessoas era um método de execução aperfeiçoado pelo Império Romano, destinado aos condenados por crimes graves. Craig S. Keener explica detalhadamente porque a crucificação era cruel, vergonhosa e fatal.
“A crucificação era a forma mais vergonhosa e dolorida de execução que se conhecia na Antiguidade. Completamente nu - uma condição especialmente vergonhosa para judeus palestinos -, o condenado era pendurado na cruz aos olhos da multidão, visto por todos como um criminoso, incapaz de reter a excreção de fezes e urina em público, e sujeito a uma tortura lancinante. Às vezes, a vítima era amarrada à cruz com cordas; em outros casos, como no de Jesus, ela também era pregada à cruz. Suas mãos não estavam livres, de modo que não podia afastar os insetos atraídos por suas costas ensanguentadas ou por outras feridas. O peso da própria vítima fazia o corpo pender numa posição que, uma hora ou outra, impedia a respiração – isso se ela não morresse antes disso por desidratação ou (nos casos em que também era pregada à cruz) pela perda de sangue. Um suporte para os pés afixado na cruz permitia que ela se apoiasse um pouco, mas sua força cedo ou tarde se esgotaria e (em geral depois de vários dias) ela morreria sufocada ou (morte rápida) desidratada.”[3]
Embora a morte de cruz fosse horrenda[4], física, social e psicologicamente, os romanos a viam, adicionalmente, como um ritual intimidatório contra rebeliões em seu império.
“Os romanos viam as crucificações não apenas como uma violação do corpo, mas também como um ritual de degradação. As mortes dolorosas, que envolviam um sofrimento excruciante para o condenado supliciado, manifestavam-se pela desfiguração, desmembramento, esmagamento e perfuração do corpo humano; tudo coreografado no intuito de exibir e encenar publicamente o estado corporal e socialmente deteriorado da vítima. A violência da cruz excedia a punição física, culminando na aniquilação simbólica, com a destruição da carne da vítima, expressando a capacidade romana de suprimir toda ameaça a soberania estatal.”[5]
Por essa razão, “a crucificação era uma das formas mais horrendas e repulsivas de se morrer”.[6] Com isso em mente, podemos afirmar que, para os soldados e demais romanos envolvidos na crucificação de Jesus, sua morte não teve qualquer significado espiritual. Para eles, aparentemente, Jesus de Nazaré era apenas mais um dos milhares de criminosos que o Império tinha o direito e dever executar.
Com exceção do centurião, que interpretou os acontecimentos e a atitude de Jesus como sinais de sua inocência[7], (Lc 23:47), os soldados não compreenderam a morte de Jesus como os evangelhos a retratam. A atitude cruel dos soldados ao torturá-lo e sua irreverência em relação as suas vestes demonstram sua incredulidade em relação a qualquer plano de salvação que eles, sem o saber, estavam tomando parte ativa (ver Mt 27:27-31; 35). As palavras de Jesus “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem” (Lc 23:34) tornam patente a ideia de que os soldados e romanos em geral não compreendiam a quem estavam crucificando e qual seria o significado de Sua morte.
A crucificação para os judeus
Os judeus do tempo de Cristo tinham uma visão absolutamente negativa da crucifixão. Eles consideravam esse tipo de morte não apenas um instrumento de opressão dos romanos, mas como um castigo divino. A visão judaica dos tempos de Jesus é explicada pelo apóstolo Paulo: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar — porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro” (Gl 3:13).
Essa citação resumida de Paulo reflete o que Moisés escreveu no Pentateuco: “Se um homem tiver cometido um pecado digno de morte, e for morto, e o tiveres pendurado num madeiro, o seu cadáver não permanecerá toda a noite no madeiro, mas certamente o enterrarás no mesmo dia; porquanto aquele que é pendurado é maldito de Deus. Assim não contaminarás a tua terra, que o Senhor teu Deus te dá em herança.” (Dt 21:23)
Ser declarado como maldito “exprime o ser afastado da escolha divina.” O termo é antônimo de bênção nas leis (Gn 27:12; Dt 11:26, 28 e 29; 23:6). A maldição vem quando o povo não cumpre os mandamentos (Dt 11:28), descumpre a aliança com Deus (Dt 29:26), não ouve as advertências divinas através dos profetas (Jr 26:6) e ainda quando os filhos da aliança são idólatras (Jr 44:8).[8] Para os judeus, ao pé da cruz, Jesus era um transgressor da Lei de Deus e fora amaldiçoado e abandonado por Ele. Deus o estava castigando ali mesmo, por seus próprios pecados. Apesar disso, as declarações (em tom de deboche), dos principais sacerdotes, escribas e anciãos, afirmam muito acerca da pessoa e obra de Jesus: “Salvou os outros”; “É rei de Israel” Confiou em Deus”. “Sou Filho de Deus” (Mt 27:41-42).
A crucificação para os discípulos
Para os primeiros seguidores de Jesus, chamados de discípulos, a prisão e posterior crucifixão de Seu Mestre representou o fim de suas esperanças. Por essa razão, os apóstolos o abandonaram, Judas se enforcou e muitos ficaram desalentados, vários dias. O diálogo de Jesus, após a ressurreição, com dois discípulos, reflete o sentimento geral de seus seguidores: Em tom melancólico, dois deles afirmaram que os principais sacerdotes e as autoridades "o entregaram para ser condenado à morte, e o crucificaram. Ora, nós esperávamos que fosse ele quem havia de remir Israel” (Lc 24:20-21).
Antes de sua morte, o sentimento geral era que Jesus era o Messias e iria libertar os judeus do jugo romano. Essa era a expectativa dos apóstolos, discípulos e simpatizantes do Rabi Galileu. Os apóstolos criam num Messias político e expressavam suas convicções várias vezes durante suas interações com Jesus, durante seu ministério público (Jo 6:14-15). Mesmo após a ressurreição, eles ainda esperavam que o reino de Jesus fosse estabelecido na Palestina, no primeiro século (ver At 1:7). A crucificação, portanto, representou, um duro golpe nas suas falsas expectativas. O evento envolveu-os em trevas espirituais, medo, dúvidas e incertezas (Lc 24:37-49). Eles só viriam a captar o verdadeiro significado da crucificação após a ressurreição do Senhor, por meio de suas aparições e ensinos repetidos e reexplicados durante 40 dias (Lc 24; Jo 20-21).
A crucificação para Jesus
Depois de analisar o significado da crucifixarão para os romanos, judeus e discípulos de Jesus, é necessário fazê-lo em relação a Ele mesmo. A visão dos autores e expectadores humanos da morte de jesus é oposta à Sua. Ele compreendeu, como ninguém, o que significou seu ato na cruz.
O calvário serviu de base para o altar onde o Filho de Deus foi oferecido com sacrifício pela humanidade. A cruz foi o mais elevado altar já levantado nessa terra. Não é à toa que Jesus afirmou: “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim” (Jo 12:31). Suas palavras ilustram a importância e atração que Sua morte causaria, para toda a humanidade.
O texto bíblico menciona: “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito." (Jo 19:30). Em uma tradução moderna da Bíblia o texto diz: “Tudo está completado” (Jo 15:30, NTLH). O Comentário Bíblico Adventista parece refletir essa tradução, ao explicar:
“Jesus havia começado o trabalho que o Pai Lhe confiara (Jo 4:34). Cada etapa do plano da redenção, estabelecido antes da fundação do mundo, havia sido concluída dentro do cronograma... Satanás fracassara em suas tentativas de arruinar o plano. A vitória de Cristo assegurou a salvação do ser humano.”[9]
Durante toda a vida, especialmente após os 12 anos de idade (ver Lc 2:41-50), quando tomou consciência que Ele seria o cordeiro de Deus e especialmente durante os três anos de ministério público, “Jesus esperava completar Sua missão com uma morte violenta”[10] e, ao dar esse brado, concluía, vitorioso, essa missão, pois “toda a Sua vida foi um prefácio de Sua morte na cruz”[11].
O termo original está consumado é tetelestai. Essa expressão, em grego, tem o sentido de pagar uma dívida. “Recibos de impostos em papiro foram encontrados com a palavra grega “Tetelestai” escrita neles, o que significa ‘liquidado’[12]. Paulo, em Colossenses, explica que, ao morrer, Cristo estava “cancelando o escrito de dívida que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o inteiramente, encravando-o na cruz. E, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando sobre ele na cruz.” (Cl 2:14-15).
“Cristo não entregou Sua vida antes de que realizasse a obra que viera fazer, e ao exalar o espírito, exclamou: ‘Está consumado’. Ganhara a batalha. Sua destra e Seu santo braço Lhe alcançaram a vitória. Como Vencedor, firmou Sua bandeira nas alturas eternas. Que alegria entre os anjos! Todo o Céu trinfou na vitória do Salvador. Satanás foi derrotado, e sabia que seu reino estava perdido [...] para os anjos e os mundos não caídos, o brado: ‘Está consumado’, teve profunda significação. Fora em seu benefício, bem como no nosso, que se operara a grande obra da redenção. Juntamente conosco, compartilham eles os frutos da vitória de Cristo.”[13]
White acrescenta que, naquele ato, Jesus desmascarou definitivamente o caráter e obra de Lúcifer. “Era desígnio divino colocar as coisas numa base de segurança eterna”, por isso foi dado tempo a Satanás para atuar e demonstrar seu governo. Com o brado está consumado foi assegurada “a destruição do pecado e de Satanás, a redenção do homem era certa e que o Universo está para sempre a salvo. O próprio Cristo compreendeu plenamente os resultados do sacrifício feito no Calvário. A tudo isto olhava Ele quando exclamou na cruz: ‘Está consumado’”.[14]
Tetelestai, para C.H. Spurgeon é “um oceano de significado contido em uma única gota de linguagem, uma mera gota”; para A.W. Pink “uma eternidade será necessária para que se manifeste todo o conteúdo dessa expressão”. Charles Simeon exclamou: “Todas as palavras de Jesus merecem nossa maior atenção, mas esta palavra ofusca todas as demais”. Tetelestai tem sido descrito como “a maior palavra, do maior personagem, no maior momento de toda eternidade”[15]. Mas, que significado você dará, nessa Páscoa, a essa expressão?
“Porém, na cruz, enquanto se ouvia um som que irrompia das profundezas fantasmagóricas do inferno, ouviu-se também um grito carregado de inesgotável amor: ‘Está consumado!’ (Jo 19:30). Esse brado decisivo assinalaria a vitória do bem na luta milenar sobre o senhorio da Terra. Agora o reino eterno, o poder e a glória são Dele e só Dele. Agora, vivemos na expectativa de que ‘todos os governantes O adorarão e Lhe obedecerão’ (Dn 7:27, NVI). Sim, Jesus reina para sempre, porque, como canta Gaither Vocal Band: ‘Está terminado, a batalha acabou / Está terminado, não há mais guerra / Está terminado, é o fim do conflito / Está terminado e Jesus é o Senhor.’”[16]
Ribamar Diniz
É pastor, escritor e editor. Atualmente é mestrando em Teologia pelo SALT/FADBA, membro da Sociedade Criacionista Brasileira e pastor distrital na Missão Pará Amapá. Seus artigos podem ser lidos em www.ribamardiniz.com
Referências:
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[1] Nota à Imprensa, Advogado-Geral da União pede medida cautelar ao Supremo para possibilitar atividades religiosas. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/comunicacao/noticias/nota-a-imprensa-1. Acesso: 02 de abril de 2021. [2] Para mais detalhes sobre a crucifixão veja: https://biblia.com.br/dicionario-biblico/c/crucifixao/. Acesso: 01 de abril de 2021. [3] Craig S. Keener, Comentário histórico-cultural da Bíblia: Novo Testamento. Ed ampliada. Tradução de José Gabriel Said, Thomas Neufeld de Lima (São Paulo: Vida Nova, 2017), 135-136 [4] Rodrigo P. Silva, A arqueologia e Jesus – Uma abordagem Histórico-Científica da Vida e Obra de Jesus de Nazaré, Artur Nogueira, São Paulo: Editora Paradigma), 260-263. [5] Daniel Soares Veiga, Invertendo o jogo: a crucificação de Jesus usada como arma para desqualificar a divindade do imperador segundo o evangelho de João. Disponível em: https://www.klineeditora.com/revistajesushistorico/arquivos12/6danielveiga.pdf. Acesso: 02 de abril de 2021. [6] Daniel Soares Veiga, Invertendo o jogo: a crucificação de Jesus usada como arma para desqualificar a divindade do imperador segundo o evangelho de João. Disponível em: https://www.klineeditora.com/revistajesushistorico/arquivos12/6danielveiga.pdf. Acesso: 02 de abril de 2021. [7] Ver Bíblia de estudo NAA. Barueri, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018. comentário sobre Lc 23:47. [8] Vamberto Marinho de Arruda Junior, O maldito e a contaminação da terra em Deuteronômio 21:22-23: uma análise exegética, Revista Hermenêutica, Cachoeria, BA, vol. 13, N. 01. Pg. 120. Disponível em: https://seer-adventista.com.br/ojs3/index.php/hermeneutica/article/view/282/286. Acesso: 02 de abril de 2021. [9] Francis D. Nichol (editor). Comentário bíblico adventista do sétimo dia, vol. 05, 1ª ed. (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2013), 1184. [10] Hans K. LaRondelle, Doutrina da salvação: Justificação pela fé. Brasília – 1982 Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia: Instituto Adventista de Ensino. Santo Amaro – São Paulo, 43. [11] White, Fundamento da Educação Cristã, 382. [12] https://biblia.com.br/dicionario-biblico/t/tetelestai/. Acesso: 01 de abril de 2021. [13] Ellen G. White. O Desejado de todas as nações. Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora Brasileira, 2004), 759. [14] Idem, 759, 764. [15] Rev. Rodolfo Garcia Montosa, Está consumado! (João 19.30). Disponível em: http://www.ipilon.org.br/conteudo-e-midia/mensagem/palavra-de-vitoria. Acesso: 02 de abril de 2021. [16] Revista Adventista, julho de 2020, pg. 23.
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