A atual geração não tinha visto ainda uma comoção mundial como a pandemia do coronavírus. Além dos impactos na saúde, dos prejuízos econômicos, do isolamento social e de outros problemas que ainda surgirão, a fé de milhões de pessoas também foi afetada.
Devido as recomendações das autoridades sanitárias e governos, as organizações religiosas, em sua maioria, suspenderam as atividades públicas. Alguns decretos de prefeituras e estados brasileiros restringiram aglomerações, o que afetou a rotina das igrejas. Templos foram fechados, cultos cancelados e cerimônias religiosas suspensas. Diante disso, alguns se perguntam: Não seria falta de fé fechar as igrejas?
Como o isolamento social é a única medida para evitar o contágio em massa, reduzir a movimentação de pessoas e evitar aglomerações é a melhor solução. As igrejas precisaram ser fechadas, assim como outros espaços públicos, justamente para evitar a circulação do novo coronavírus. A Igreja Adventista do Sétimo Dia, desde o início, seguiu as normas, o que não poderia ser diferente, pois essa instituição tem a promoção da saúde como um de seus pilares, incluindo o cuidado do corpo em uma de suas crenças fundamentais [1].
A maioria das sedes administrativas adventistas no Brasil já publicaram notas recomendando a suspensão dos cultos e a realização dos mesmos em família. A Igreja Adventista tem preparado conteúdo digital especialmente para esse período e a TV Novo Tempo adaptou sua programação para o momento. A instituição tem divulgado muitos materiais preventivos e já lançou a série Viralize Esperança, para alcançar as pessoas em casa.
Em minha opinião, não existe conflito entre a fé e a obediência aos recentes decretos. Em primeiro lugar, as orientações das autoridades têm um objetivo específico e são provisórias. Não constituem um atentado à liberdade religiosa, pois não ferem os princípios bíblicos [2]. Passado o perigo as igrejas e outras entidades voltarão a funcionar normalmente. A obediência as medidas adotadas não é negação da fé, em minha opinião, pois alguns princípios bíblicos os respaldam:
Princípio da esfera de atuação divino-humana
A Bíblia Sagrada apresenta diferentes esferas de atuação para Deus e suas criaturas. Embora Deus seja onipotente e soberano (Gn 1; At 17:28; Rm 8:21-25) Ele concedeu o livre arbítrio ao ser humano e capacidade para atuar em determinada esfera (Gn 1:27-28; 3; Dt 28).
Vários episódios bíblicos ilustram esse princípio. Deus ordenou o povo de Israel marchar, enquanto Ele abriu as águas do Mar Vermelho (Ex 14:15-16); mandou colher o maná, enquanto Ele enviou o pão do céu (Ex 16); orientou Josué rodear Jericó e Ele derrubou os muros da cidade (Js 6:2-3). Jesus mandou os homens tirarem a pedra, antes de ressuscitar Lázaro (Jo 11:39, 43); disse aos serventes para encher as talhas, antes de transformar água em vinho (Jo 2:7-9); mandou Pedro lançar as redes, antes de operar o milagre (Jo 21:5-6).
Comentando a ressurreição de Lázaro, Ellen White escreveu: “Cristo podia ter ordenado à pedra que se deslocasse por si mesma, e ela Lhe teria obedecido à voz. Poderia ter mandado aos anjos que se lhe achavam ao lado, que fizessem isso. Ao Seu mando, mãos invisíveis teriam removido a pedra. Mas ela devia ser retirada por mãos humanas. Assim queria Cristo mostrar que a humanidade tem de cooperar com a divindade. O que o poder humano pode fazer, o divino não é solicitado a realizar. Deus não dispensa o auxílio humano. Fortalece-o, cooperando com ele, ao servir-se das faculdades e aptidões que lhe foram dadas.” [3]
Um exemplo que envolve a restauração da saúde foi a cura do rei Ezequias. Ele contraiu uma doença mortal. Deus prometeu curá-lo, mas o profeta Isaías disse: “Tome-se uma pasta de figos e ponha-se como emplasto sobre a úlcera; e ele recuperará a saúde” (Is 38:1; 21). No caso do coronavírus, nossa participação é bem simples: lavar as mãos, ficar em casa, evitar aglomerações ou procurar o médico caso tenhamos sintomas. Deus não precisa fazer isso por nós.
Princípio da dupla cidadania cristã
O cristão tem duas pátrias: a celestial, que ele deve priorizar e a terrena, a quem ele necessita obedecer [4]. Jesus explicou esse princípio ao afirmar: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21). Aqui Ele “estabeleceu o princípio fundamental que determina o relacionamento do cristão com o Estado. Ele não deve ignorar as exigências justas que o Estado coloca sobre ele, porque certas coisas ‘são de César’”, embora a autoridade de Deus seja suprema e a lealdade suprema do cristão pertence ao Senhor. O cristão coopera com as autoridades temporais por que elas foram ‘instituídas’ por Deus (Rm 13:1). Assim, pagar o tributo a César não era contrário à lei de Deus [5] e ficar em quarentena por alguns dias parece ser justo nesse momento.
Princípio da prudência e do amor ao próximo
Jesus afirmou que os apóstolos deveriam ser simples como as pombas e prudentes como as serpentes (Mt 10:16). Ele mesmo praticou a prudência em seu ministério, evitando situações que poderiam comprometer o êxito de sua missão (Mt 12:15-16; 17:27). Temos um exemplo interessante da aplicação desse princípio na história adventista.
O pastor D. E. Robinson, escreveu que, quando houve uma epidemia de varíola na vizinhança, Ellen G. White foi vacinada e instou a seus ajudantes a fazerem o mesmo. Ao dar esse passo, ela “reconheceu também o perigo de expor os outros, caso eles falhem em tomar essa precaução.” [6]
Se Ellen White e seus associados seguiram as orientações das autoridades sanitárias de seus dias, na epidemia da varíola, não deveríamos nós, na pandemia do coronavírus, fazer o mesmo hoje? Como não há vacinas disponíveis ainda, deveríamos, por precaução, adotar as medidas recomendadas.
Jesus também ensinou amar o próximo como a nós mesmos (Jo 13:35-35). Junto do amor a Deus, esse é o maior mandamento da Lei. Nós o guardamos com atos de compaixão e misericórdia ao necessitado (Lc 10:27-37). Pensar no próximo, especialmente nos idosos e pessoas com doenças crônicas, mais vulneráveis ao coronavírus, são atos de amor desinteressado. Todos as nossas ações, nesse momento difícil, deveriam refletir o amor aos semelhantes, ainda que afetem nosso costume de congregar no templo (Hb 10:25).
Infelizmente, algumas igrejas não seguiram as recomendações emitidas e mantiveram seus cultos. Isso acabou proliferando o vírus em alguns lugares. Na Coréia do Sul, mais de 60% dos quase 8.200 casos de Covid-19 estão vinculados à Igreja de Jesus Shincheonji, considerada uma seita por muitas pessoas”[7]. Apesar do pedido de perdão de seu líder, recentemente [8], a disseminação do vírus poderia ter sido menor se os princípios aqui expostos tivessem sido lembrados.
A resposta de Jesus a Satanás, “não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4:5-7), quando este O induziu a correr riscos desnessários, é apropriada também para aqueles que insistem em manter igrejas abertas. Diante da crise atual não podemos ser propagadores do vírus. Devemos ser parte da solução, e, em nossos lares ou pelas redes sociais, viralizar esperança.
Ribamar Diniz
Mestrando em Teologia (SALT/FADBA)
Referências:
[1] Ver https://noticias.adventistas.org/pt/notas-oficiais/acoes-de-prevencao-da-igreja-adventista-na-america-do-sul-em-relacao-ao-coronavirus(acesso: 22/03/2020); Manual da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, São Paulo: CPB, 2016), pág. 174. Ver crença fundamental 22: Conduta cristã.
[2] “Vi que o nosso dever em cada caso é obedecer às leis de nossa pátria, a menos que se oponham às que Deus proferiu com voz audível do Monte Sinai, e depois, com o próprio dedo, gravou em pedra. "Porei as Minhas leis no seu entendimento, e em seu coração as escreverei; e Eu lhes serei por Deus, e eles Me serão por povo." Heb. 8:10. Ellen G. White, Testimonies, vol. 1, pág. 361, 1863.Disponível em http://ellenwhite.cpb.com.br/livro/index/25/45/49/nossa-atitude-para-com-as-autoridades-civis(Acesso: 22/03/2020).
[3] Ellen G. White, O Desejado de todas as nações (Tatuí, SP: CPB, 2004), 535.
[4] Ver Alberto R. Timm, “Os adventistas e a política: conceitos básicos sobre a posição dos adventistas sobre política” Revista Adventista, maio de 2006, p. 13.
[5] Francis D. Nichol, Ed. Comentário bíblico Adventista do Sétimo Dia, vol. 5 (Tatuí, SP: CPB, 2013), Comentário sobre Mt 22:21, pág. 513.
[6] http://www.centrowhite.org.br/perguntas/perguntas-sobre-ellen-g-white/raio-x-e-vacinacao/(Acesso: 22/03/2020)./
Comments